segunda-feira, 26 de julho de 2010

Lembrados e Esquecidos na Construção do Currículo


(Charge portuguesa, referência à Revolução dos Cravos que pôs fim a Ditadura de Salazar).

A memória, função da mente responsável por boa parte das ações humanas, tem papel fundamental na vida das pessoas que se constituem e se realizam historicamente formando aquilo que alguns chamam de processo histórico ou de história como vida efetiva. Desse modo, é a memória ou as memórias que constituem o objeto a que recorre o historiador em seu ofício. É por meio de documentos, vestígios, enfim, das fontes que são os lugares de memória que o historiador utiliza para construir e alinhavar seus argumentos e análises que formam a outra história, a disciplina. As memórias reconstruídas pelo historiador a partir das várias memórias individuais compartilhadas em determinado tempo e espaço formam a história, por assim, dizer uma memória coletiva criada, construída. As fontes assim constituem-se registros de lembranças que perpetuam a memória seja quando reconstruídas pelo historiador por meio da análise de documentos e fontes, seja quando como monumento, perpetua uma ação, um dia, um fato, um herói, com alguma outra finalidade que não seja a do “mero lembrar”. Nesse ponto, os perpetuadores de memórias devem passar pelo crivo da crítica historiográfica e se tratando de uma sociedade democrática, seus cidadãos também podem e devem fazê-la.

A pesquisa histórica deseja ser uma explicação da realidade e de acordo com as regras sociais que nos regem, esta explicação histórica é vista como um componente importante na formação dos novos cidadãos, tanto que faz parte do currículo. Daí, então algumas perguntas: que sentido (ou sentidos) a importância da explicação histórica toma na educação de nossa sociedade? Isto, obviamente depende primeiro, do tipo de governo e segundo, do uso que se faz da educação e em terceiro lugar, não menos importante, o nível de exigência da sociedade. Até quando a educação como uso ideológico (embora, toda educação é reprodutora e/ou crítica de determinadas ideologias) continua tão importante numa sociedade em que a propaganda é muito mais eficiente como formadora de opinião do que a própria educação em si, entendida aqui como educação formal? Se assim realmente for, seria muito mais conveniente não investir em educação crítica, pois seria no mínimo contraproducente ou mesmo constituir-se-ia investimentos inconciliáveis e até mesmo contraditórios com o tipo de sociedade.

Essas questões nos remetem a própria construção do currículo, e este não é por acaso e nem muito menos óbvio, é sempre bom lembrar que por trás do currículo existe o que está oculto, as estratégias de vinculação de conteúdos, temas, abordagens que interpretam e dão sentidos às nossas histórias, que mostram ou impõem o lugar de cada sujeito ou grupo na história nacional e internacional. É preciso garantir o direito de aprender, mas aprender o quê e de que forma se dá tal aprendizado, o que é relevante e o que é desnecessário. Estas escolhas são resultados de jogos de forças que envolvem vários circuitos da sociedade, desde a produção de determinado conhecimento, da divulgação e edição e até mesmo da recepção e aceitação do mesmo, que leva em conta, por sua vez, o reconhecimento dos indivíduos e o nível de espelhamento que tal conhecimento tem com a sociedade a sua volta, quais sujeitos determinada interpretação exalta, quais ela minimiza, quais ainda ela ignora. A falta de grupos organizados de pressão engajados nas causas da educação pode por vezes contribuir para a pouca renovação ou até mesmo criar interpretações dogmáticas, a falta ou a pouca relação entre os produtores de conhecimento e seus principais sujeitos e receptores, aliás, esta separação abismal entre uns e outros, sem que se perceba que uns e outros são tanto produtores e consumidores, provoca um grande hiato entre a sociedade e o nível de interpretação que se faz dessa sociedade, ou mesmo, a divulgação popular e não vulgar dos conhecimentos produzidos sobre a sociedade.

A construção do currículo não é apenas a definição de temas ou conteúdos que vão ser estudados, mas também o tipo de interpretação que vai ser utilizada para explicar nossa sociedade (lembrando que a escolha do tema já nos impõe um tipo de narrativa e abordagem), por mais que o currículo seja flexível e aberto, há sempre uma abordagem ou uma metodologia que o subjaz ou várias (nem sempre coerentemente fundamentadas). Nesse ponto quanto mais, melhor, pois há que ser ter uma abertura em todos os sentidos para que um mesmo tema seja abordado por este e aquele olhar. Nesse sentido, o currículo deve ser construído por todos os segmentos da sociedade para que cada um seja nele representado, para que cada segmento faça valer sua interpretação sobre tal e qual fatos e consiga a mais abrangente escolha dos mesmos.

A concepção de verdade deve ser pluralizada, humanizada e relativizada. O consenso interpretativo deve ser constantemente revisto e criticado. As verdades em história são construídas e enredadas em argumentos que por sua vez são sustentados por abordagens que se utilizam de algumas fontes ao passo que ignoram e excluem outras. Isso tudo deve ser bem detalhado pelo método em descrição pormenorizada, só assim, as verdades se constituem e se sustentam até pelo menos aparecer um estudo mais bem fundamentado que lhe faça a crítica e o supere ou pelo menos, o faça concorrência. Por outro lado, quando há a dita superação, não quer dizer e nem significa necessariamente uma evolução (do pior para o melhor) é sempre relativo a recepção crítica. A história editorial é repleta de casos em que autores foram execrados em seu tempo e tornaram-se clássicos depois da morte, sendo que, o contrário também é válido, ou diferentemente, quando as visões da sociedade mudam, depois de uma revolução cultural ou de um cataclisma político e ou econômico alguns autores são esquecidos, obscurecidos enquanto outros ganham notoriedade.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Entre o julgamento e a neutralidade, a independência



O homem é sujeito de seu tempo, embora, tal frase seja hoje em dia recorrente e até mesmo já tenha se tornado politicamente incorreta, pois alguns vão dizer: o homem e a mulher são sujeitos de seu tempo, e outros: os grupos humanos são sujeitos de seu tempo; mas muitos ainda se esquecem de perceber isso como tal, representar e expressar os homens e as mulheres como sujeitos de seu tempo, criadores de suas próprias histórias, de uma forma ou de outra, seja de maneira passiva ou ativa, pois sofrer a história também é uma forma de fazê-la.

Sobre isso, o poema de Brecht tem muito a nos dizer:

Quem construiu Tebas de sete portas?

Nos livros estão os nomes dos reis.

Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?

E as várias vezes destruída Babilónia —

Quem é que tantas vezes a reconstruiu?

Em que casas da Lima fulgente

de oiro moraram os construtores?

Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta

a Mu­ralha da China? A grande Roma

está cheia de arcos de triunfo. Quem os levantou?

Sobre quem triunfaram os césares?

Tinha a tão cantada Bizâncio

Só palácios para os seus habitantes?

Mesmo na lendária Atlântida

Na noite em que o mar a engoliu bramavam os

afogados pelos seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou a Índia.

Ele sozinho?

César bateu os Gálios.

Não teria consigo um cozinheiro ao menos?

Filipe da Espanha chorou, quando a armada se afundou.

Não chorou mais ninguém?

Frederico II venceu na Guerra dos Sete Anos —

Quem venceu além dele?

Cada página uma vitória.

Quem cozinhou o banquete da vitória?

Cada dez anos um Grande Homem.

Quem pagou as despesas?

Tantos relatos

Tantas perguntas.

Brecht tem bem mais a dizer que alguns historiadores do século XIX, discípulos de Ranke e da escola metódica que predominava como corrente historiográfica neste período, ou antes, de Tucídides, ex-general punido (num contexto completamente diferente que invalida até mesmo esta comparação) que passou então a relatar aquilo que via, apenas o que via, imparcialmente, pelo menos pensava ele. Pois a tentativa de ser imparcial e neutro é impossível, ainda mais quando se propôs alcançar esta imparcialidade descrevendo os grandes homens de seu tempo, como os heróis do nacionalismo propagado pela escola metódica, uma versão historiográfica do espírito do tempo (zeitgeist) de Hegel.

Na outra ponta oposta da história dos heróis esteve a história quantitativa nos idos de 1970, com seus primeiros computadores que fizeram os historiadores de então, entre entusiasmados e temerosos, dizerem: a história agora se faz a partir das estatísticas, da quantificação dos dados populacionais, econômicos, censitários, etc. A mensagem subliminar era: os homens e mulheres comuns, os pobres, os trabalhadores só podem aparecer na história, como sujeitos de seu tempo, pelos números e dados quantitativos.

Outra linha historiográfica se aproveitava dessa nova onda da história quantitativa (talvez nem chegou a tanto) para reivindicar a história dos vencidos, que Brecht amigo do Benjamim da história a contrapelo fazia sem o fundamentar, até porque ele era um poeta, um dramaturgo, enfim, uma artista e não historiador de ofício. Assim, o representante mais bem sucedido dessa história dos vencidos tenha sido um outro marxista, heterodoxo até o topete, militante e professor de escola para trabalhadores adultos, portanto, completamente fora do círculo universitário. Estas são as características marcantes de Edward P. Thompson, que ficou conhecido depois de seu belo estudo da Formação da Classe Operária Inglesa. Nesse livro, Thompson conseguiu revitalizar a perspectiva marxista reformulando vários conceitos como o de classe e trazendo à tona o de experiência que, em seu dizer, estava apenas subtendido no Capital de Marx. Thompson é também representante de uma história engajada que mostra claramente sua linha partidária, se tem a vantagem de ser transparente e revelar claramente sua perspectiva de abordagem, deixa a desejar quando também se vê no direito de julgar, mesmo que nesse caso, diferentemente de um discurso legitimador do poder como era o discurso dos discípulos de Ranke, faz-se o dos vencidos que procura criticar a legitimidade dos vencedores. Mas o pano de fundo é quase sempre um conflito ético-moral pendular que vai de uma visão socialista a uma liberal, e ambos os lados se arrogam de buscar o melhor, o bem e a verdade.

A questão então, estritamente historiográfica, é até quando uma tomada de posição política pode afetar a visão do historiador na abordagem de seu material? Ele poderá se sentir mais propenso a considerar mais importantes fatos alinhados a sua posição política ou não? A própria perspectiva tomada, de acordo com sua ideologia, não poderia já de antemão excluir versões diferentes das escolhidas? Fica ainda, a lição de Marc Bloch (parafraseada): o historiador não deve ser juiz da história.

A história dos vencidos pode também resvalar em uma das maiores tentações dos historiadores que representavam o status quo: o julgamento. E não estamos, com isso, defendendo a inocência ou cinismo de achar que seja possível uma história imparcial. Não, mil vezes não! Porém, não podemos deixar de exigir uma história independente, independente em todos os sentidos, uma história que seja independente de nós mesmos, que embora não possamos evitar escolher e de construir os temas que mais nos chamam a atenção negativa ou positivamente, não podemos fazer de nosso objeto de pesquisa, um objeto de exposição de nossos valores, pois mais que achemos que tais são universais, ou que pelo menos deveriam ser, não podemos transformar o nosso trabalho de historiador em uma bandeira de luta para defender nossos ideais, pelo menos não conscientemente, mesmo que adiante outros, nas entrelinhas, vejam isso com o nosso trabalho.

Os homens são sujeitos da história porque fazem a história, mas como a fazem e qual o grau de importância que tal e qual ação, eis a questão relevante para o historiador. Evidentemente, que nesse quesito, de dar ou tirar importância dos atos e acontecimentos, o trabalho do historiador com sua abordagem característica é que vai determinar o grau de relevância dos mesmos. Portanto, é a abordagem, a perspectiva da análise que vai definir os sujeitos da história. Quem merece ser lembrado, quem merece ser esquecido, evidentemente que o método e a perspectiva do historiador que faz a análise, que define quê fatos são mais relevantes, por mais que seja fundamentado e respaldado nas fontes e nas considerações das várias interpretações em jogo, a decisão do historiador é de certo modo, tanto uma ação ética quanto política, e no fim das contas, escapar ao julgamento é uma tarefa hercúlea. Por isso é preciso ser sobretudo independente...