domingo, 21 de setembro de 2008

Municipalismo e Livre Associação: Críticas Libertárias à Democracia Representativa



A idéia puramente quantitativa, que sugere que o tamanho das instituições sugere a sua impessoalidade, a qual, por sua vez, leva à prática da indiferença, é simplista demais. (SENNETT. Autoridade. P. 122).


A atualidade do anarquismo consiste na sua crítica à democracia representativa, entendendo esta como uma farsa, diria, como antidemocrática, pois um governo do povo, para sê-lo, deveria ser exercido pelo povo e não por seus supostos representantes. Assim, uma democracia representativa se levada a sério, trata-se de uma contradição em termos.

O problema que esta crítica libertária bastante atual leva a um posicionamento equivocado, pois a relação pública necessária para o exercício político é também deturpada, ou seja, a crítica anarquista joga tanto a água da bacia quanto o bebê fora. Um governo democrático deveria se constituir como um autogoverno. Este só foi concebido na prática em termos espaciais reduzidos (também temporais, com curta duração), o que levou muitos anarquistas à defesa do municipalismo democrático apenas em termos espaciais e quantitativos, que propiciaria as decisões diretas dos politicamente interessados.

Dessa forma, a crítica à democracia representativa levou os anarquistas à velha acomodação naturalista/determinista de problemas históricos e políticos, que já era utilizado por Montesquieu quando este defendia a idéia de que o sistema político também era definido e limitado pelas condições geopolíticas do local. Concluía-se que uma democracia só seria viável em uma pequena cidade, nesse sentido, constituir-se-ia em um governo permanentemente instável e vulnerável. A sua soberania estaria, assim, constantemente ameaçada por outros Estados de governos autoritários e centralizados, que poderiam, ao contrário da democracia, constituírem-se em Estados grandes e amplos capazes de garantir suas soberanias e estabilidades.

Mas o problema não estaria todo exposto se nos restringíssemos a este aspecto, como dizíamos acima, a defesa de uma democracia direta de fato, em que os reais interessados pudessem atuar politicamente sem qualquer limitação leva a uma defesa do municipalismo, este herdeiro, por certo, do federalismo proudhoniano que, como dissemos também se resvala na redução naturalista típica do iluminismo (Montesquieu, Rousseau...), mas o problema maior é que este desenvolvimento de raciocínio aproxima os anarquistas daqueles que rebaixam a vida pública, vendo esta como uma relação já em si corrompida. Nessa perspectiva, o espaço público já seria por si só um lócus desumanizador, e isto significaria supor que o impessoalismo necessário à relação dos interesses públicos desumanizaria os homens.

Daí a defesa do municipalismo ser não só uma saída para a impossibilidade de debates verdadeiramente democráticos numa sociedade de massa, o que é perfeitamente justificável, mas também um romantismo disfarçado que rebaixa a relação pública, tentando reviver algo impossível que é a vida familiar dos clãs das sociedades ditas primitivas ou pelo menos o ambiente próprio de sociedades patriarcalistas (mas sem a autoridade paterna, numa concepção palatável para alguns anarquistas) em que todos se reconheceriam enquanto irmãos.

Em outras palavras, parte da crítica atual do anarquismo referente à democracia representativa culmina em um romântico e ingênuo exame que condena a própria condição de possibilidade da política. Para esta existir é necessário o distanciamento e o impessoalismo, que se constituem em fatores básicos que criam e estabelecem o espaço público como um lócus privilegiado de decisão dos caminhos a seguir pela sociedade em questão.

O espaço público deve ser formatado pela suas próprias necessidades, projetos e anseios, o que importa não é a dimensão, mas as multiplicidades de relações e dimensões possíveis. Porque as condições de igualdade em que os poderes individuais em seu exercício público se fundirão, se anularão, se superarão na tentativa de criar o consenso democrático da maioria, não é determinado tanto pelo número de debatedores, mas pela as inter-relações em que estes podem fazer, pelas configurações infinitas que os indivíduos podem formar, os grupos e sub-grupos que podem fundir, desfazer e refazer infinitamente.

Acrescentando a isso, aí sim, a grande contribuição dos libertários à democracia direta que é a de deixar livres aqueles que foram derrotados em suas idéias e propostas para desassociarem quando quiserem sem perdas, ressentimentos ou represálias e fundarem outros núcleos autônomos com outras condições e outros poderes de decisões.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

(Urano, O Amigo do Povo nº 27 Ano II, São Paulo, 30 de maio de 1903).


O Nosso Conceito da Revolução

Os anarquistas formam dentro do conjunto heterogêneo que compõem a atual sociedade, outra pequena sociedade ou núcleo distinto. Esta pequena parte distingue-se do todo social por certas qualidades e por sua maneira de obrar. Se não se distinguisse nem obrasse diferentemente dos outros membros não haveria modo de conhecer-se na sociedade e nos indivíduos se opera ou não progresso algum.

Quem possui um conceito novo e distinto da sociedade, das suas leis e costumes há de forçosamente proceder diversamente dos que não pensam como ele. Se alguns indivíduos, intitulando-se anarquistas, não fazem o menor esforço para se distinguir de generalidade na sua vida íntima e em público prescindindo de certas regras sociais ou abandonando certos prejuízos adquiridos, esses serão anarquistas, não quero nem pretendo negá-lo, mas quando muito, anarquistas líricos. E os líricos não fazem pressão alguma sobre nada, nem exercem peso no prato da balança do progresso.

E completamente impossível conhecer a fundo a sociedade presente sem a odiar e é também impossível continuar com o fardo de mentiras e imoralidades que a formam sem lhes declarar guerra aberta. Declaramo-nos revolucionários e damos à palavra "revolução" todo o valor positivo que depois de contínuas e constantes análises, lhe deu a sociologia. Antes, revolução significava sangue, destruição, matança de seres humanos. Os políticos serviram-se da revolução como instrumento para substituir homens no poder e as revoluções era sempre o povo que as fazia por encargo e para proveito deles. Toda a missão da revolução se tem reduzindo a uma simples mudança de poderes: substancialmente, tudo fica como d'antes. Em suma, a revolução tem sido um simples jogo de "tira-te d'aí para que aí me ponha eu".

Foi desabrochando, porém, na mente dos explorados a idéia um melhoramento a valer e logo o conceito de revolução evolucionou, pode dizer-se que mudou quase por completo; o povo já não se mataria para tirar João e por Pedro no poder. E desde então para cá começa a fazer-se a verdadeira revolução, que trará o bem estar há tantos séculos desejado pela humanidade escrava e defendido por generosos mártires.

Declaramos guerra ao Estado porque encarna fielmente o princípio de autoridade que permite e sanciona toda a classe de monstruosidades e prescindimos dele em tudo aquilo onde isso nos é possível; em quanto não contamos com a força suficiente para o destruir por completo. A nossa rebelião contra o Estado, empregam um método de luta que o fortifica cada vez mais, como tantas vezes temos demonstrado.

Negamos ao Estado toda a nossa força, pregando sempre ao povo o abandono das urnas e ensinando-o constantemente a prescindir desta instituição tirânica. Como resultado tático, vão se organizando em todos os países poderosas corporações operárias que resolvem, sem a intervenção do governo, todos os seus assuntos e mantém as suas lutas diretamente com o patrão, sem recorrer ao parlamento, pedindo arbitragem ou proteção. Ensinando ao povo que não vote, damos lhe a compreender que o governo não é seu representante nem o pode ser; que o Estado é de emanação burguesa e que se pode livrar dele quando quiser.

Com a crítica severa que nós, anarquistas, fazemos à instituição do Estado, criamos-lhe dificuldades cada vez maiores: o número dos seus inimigos cresce todos os dias.

Do mesmo modo procedemos com as outras molas da sociedade capitalista: família, religião, militarismo, magistratura, etc.

No que diz respeito à família, não nos conformamos com pedir leis regulamentares do casamento, do divórcio, da proteção à infância abandonada e outras assim. Melhor que o divórcio é a união livre e esta praticamo-la desde já, sem precisar recorrer a esse divórcio. Desta maneira tiramos também ao governo uma atribuição, sendo assim apesar de nos dizerem cheios só de TEORIAS mais práticos que os socialistas evolucionistas que não evolucionam coisa nenhuma.

Da religião é inútil falar: procedemos com se tal coisa fosse inteiramente desconhecida.

Ao militarismo declaramos-lhe formidável guerra e desde já nos negamos a servir nas filas do exército e aconselhamos o povo a negar-lhe o seu contingente, diferindo nisto daquelas socialistas que, como Millerand, dão o seu voto contra um opúsculo, "O manual do Soldado;" porque aconselha aos jovens a deserção. Esses socialistas, especialmente onde existe guarda nacional mobilizada, prestam-se incondicionalmente a servir nas filas, vestindo a humilhante libré do soldado.

Sem políticas enervantes, férteis em armadilhas e criadoras de ambições mesquinhas, vamos revolucionando a sociedade de baixo até acima. Com a propaganda constante que fazemos, moralizamos os costumes, lançando as bases duma nova sociedade que se vai estabelecer de redentores de pacotilha.

A revolução fazemo-la em casa, na rua, e em toda a parte. Por isso, onde quer que haja um anarquista, logo se nota a sua presença. Assim, o anarquista propaga com o exemplo, a abstenção das bebidas alcoólicas. Sabe que a bebida enerva e atrofia; e deixando de se embebedar, leva os outros a imitá-lo. Na família, o anarquista é um modelo de cultura, respeita os filhos e a companheira e incita os outros a igual procedimento. Se propagandista, dá à idéia quanto tem, sem exigir retribuições; belos exemplos com Malatesta, Kropotkin, Grave, Reclus, Bakunin, Cafiero e tantos outros. Os anarquistas revolucionam o mundo mais com as suas obras do que com as suas palavras.

Se alguém, chamando-se anarquista, fizesse política, recorresse ao Estado ensinasse os trabalhadores mediante retribuição, levasse os filhos (palavra ou palavras ilegíveis) escândalos com uma vida licenciosa e passasse os dias ou as noites na taberna, esse, apesar do que dissesse em contrário, seria uma simples caricatura, nunca um anarquista convencido e consciente.