domingo, 14 de outubro de 2007

Conto: O Vômito do Ser


O Vômito do Ser

01: 30.
A noite engolia a cidade enxugando o resto de luz artificial que pingava dos postes. Passo por passo o caminho de braços abertos convidava Daniel para seu destino. Mas será que há um destino? Será que, mesmo sem Daniel saber, seus passos já estavam escritos? Sua mente cansada se esforçava por manter o raciocínio, mas logo preocupações mais iminentes como a de não cair no meio da rua lhe exauria o esforço. O que ele sabia era que tinha que tomar uma decisão. De um lado para o outro ele tentava vislumbrar o que havia a frente, mas a noite pouco a pouco, intermitentemente, sorvia as luzes raras que cobria o céu.
Envolto na indecisão, lembrava-se de um dia em que as coisas pareciam mais fáceis. Onde em um quintal brincava esquecido com seus amigos imagináveis. Ele sempre era o centro das atenções, sempre ditava as regras. E agora tudo lhe parecia diferente, estranho, sem controle. Nem seus próprios pés ele comandava. Nesse instante ele pensava em Deus. Um Deus que para ele já teve várias faces, que lhe abandonou quando mais precisava. Depois desse dia, se lembrava como se fosse hoje, ele também abandonara Deus. Deixara de ir às aulas de catecismo para jogar bola.
Sob as negras folhas de uma árvore, Daniel pára, e se percebe, nesse instante, um sorriso minguante em seus lábios trêmulos. Em sua memória aterrissou a lembrança do golaço que fizera e do abraço de seus companheiros comemorando aquele momento, um dos raros instantes de sua vida em que tudo parecia estar bem. Mas era só um gol, tudo bem, um gol bonito, mas apenas um gol. Um dos grandes problemas do ser humano... Ele não sabia, não tinha a menor idéia dos problemas do ser humano, ele sabia de seus problemas e apenas isso, ele sabia que um dos seus grandes problemas era condensar as expectativas de sua vida num momento bom, mesmo que este fosse supérfluo, enganando-se em pensar que tal momento poderia obliterar suas frustrações. Não se podia camuflar as desilusões, os fracassos pessoais. Melhor seria se não fizéssemos planos, se não sonhássemos, assim não haveria frustrações e desempregados estariam os psicanalistas. Mas seríamos humanos se assim fosse?
O sorriso que brotava de seu rosto, era a recordação de que poderia ter sido um grande jogador. Será? Sua mente caprichosa e desafiadora, mesmo lenta colocava mais lenha na fogueira de seus sentimentos. O chão parecia mais duro ao engolir em seco essa indagação, essa contestação. Sua mente, para equilibrar suas as ações, movida pelos últimos resquícios de orgulho próprio, propugnava: se não fosse aquela contusão teria sido um grande jogador, e hoje estaria na seleção. Mas que contusão, que medo de jogar e de machucar de novo, não havia contusão nenhuma. Era apenas uma autodefesa do seu espírito frente a mais um fracasso. Faltaram-lhe coragem, decisão e discernimento. O medo do novo, da visita que chegara e que lhe perscrutava com olhar curioso. A timidez em lhe dar com o inédito equilibrava a ânsia por companhia. Estava cada vez mais próximo da solidão, e isso o consolava, pois a solidão não o deixara só, lhe abraçava calorosamente como se tivesse mil braços. A solidão lhe aquecia e jamais o havia abandonado.
Os caminhos da sua vida se davam pela indecisão que o impedira de agir no passado, deixando se levar pelo vento como uma pipa que rebentara o barbante e ficara perdida flutuando esperando o momento de cair. A dúvida que o consumia, também era responsável por estar parado ali, embaixo da árvore, a qual suas folhas eram como cabelos negros que prostrava em seus ombros combalidos, não da luta, mas do arrependimento de ter fugido à luta.
Os mesmos cabelos negros que no decorrer de seus 14 anos, fazia-no freqüentar as festinhas no intuito de ganhar o direito de um beijo de despedida, o pagamento ao rapaz por levar a menina em casa. A prematura sujeição feminina ao homem, transparência de um mundo machista e paternalista, que forja mulheres que só se reconhecem enquanto tais, pelo que consegue com os homens. Em troca recebem pela sua sensualidade, a solicitude de um macho que fora naquele momento conquistado. Aos poucos, ele remontava os fragmentos de sua vida dando-lhes um formato enleado e esdrúxulo, motivado pelas circunstâncias extremas que experimentava naquele momento. Assim, na lembrança do gol também tinha os abraços de seus amigos, e mais do que isso, o que sentira de diferente daqueles abraços. Era estranho até então não havia lhe ocorrido tal manifestação de carinho, a não ser de sua mãe. Daniel não tinha pai, apenas mãe. O que sentira fora algo novo, não sabia explicar, faltava-lhe experiência para poder discernir sobre aquilo quando lhe ocorrera. Foi a primeira vez que outro ser humano, excetuando sua mãe, lhe abraçara daquele jeito. E fora um homem, e isso lhe fizera bem, se sentiu protegido. A partir daí, tudo ficara mais complicado. Ele não podia sentir aquilo, os costumes ditavam as regras e aquilo que sentira não era certo, ele aprendera. E por isso, arranjou uma namorada, o que fez com que esquecesse, pelo menos aparentemente, e isso lhe foi suficiente para o manter enganado até o dia em que descobriu que o ser humano não tinha sexo. Apenas uma marca biológica que não era determinante, e era facilmente suprimida pelo desejo. Até mesmo no escuro da rua onde Daniel se encontrava agora, seu olhar ainda mostrava o temor de que houvesse alguém para ouvir seus pensamentos, o mundo como um todo ainda não estava preparado para absorvê-los.
Alguns metros para frente, com passos trêmulos e indecisos ele se voltara para trás e percebera que os cabelos da árvore que dava um tom mais negro ainda à rua, não estava mais sobre seus ombros tal qual a lembrança de seu primeiro beijo que também fugira de sua mente. Primeiro ou aquele que seu espírito quisera que o fosse, porque agora se lembrava. Em verdade, o primeiro fora com alguém que lhe causava repulsa hoje em dia. Alguém que lhe ferira. A mente filtrara, portanto, o que seria incômodo no futuro, o que lhe doía ao pensar. A mente tem também essa utilidade. Perplexo com mais essa descoberta, ou melhor, com a revelação daquele outro ou outra que constituía seu ser, ele, não sem esforço, mas recompensado pelo alívio de não ter mais que sustentar seu peso, assentara-se. Entre seus pés e o paralelepípedo escorria o esgoto da chuva.
Nesse instante, fizera um esforço para se lembrar de quando chovera, não conseguira, então desistiu. Lembrou-se, no entanto, do esgoto, não daquele que molhava levemente o calcanhar de seu tênis, mas o de outro mais distante há uns quinze anos atrás quando ainda morava em uma favela em Belo Horizonte. Toda manhã ao acordar ficava brincando de jogar pedrinhas na fétida vala por onde passava aquela água barrenta, cheia de V separava a rua do seu minúsculo quintal. A madeira podre dos barracos a sua volta deixava a sua humilde casa de tijolos sem reboco com ar de superioridade sobre as demais que, eram, em grande parte, constituídas de madeira podre. Ele crescera numa favela.
Quando ainda criança não se importava, mas agora tinha uma vergonha terrível. Talvez fosse porque ainda não estava contaminado pelos valores sociais que fazem com que aqueles que não têm passam a desejar e admirar aqueles que têm. E também porque agora não morava mais em uma favela. Ainda um dia desses se lembrara que desligara a televisão porque só estava passando programas de fofoca, estava louco para saber do último adultério, mas se conteve. Mudando o rumo do seu pensamento que ainda se ligava por uma linha fina à idéia anterior que já quase havia se esquecido, pensou: se não fosse a televisão já teria ocorrido a revolução. Com as mãos em forma de concha subiu-as até a testa puxando levemente seus longos cabelos lisos para trás, lembrou-se num átimo de segundo que teria que cortar o cabelo, mas logo voltando ao que pensava, sorriu ao recordar do tempo em que era anarquista, de sua luta, de gabinete é verdade, pois era misantropo, era o único do minúsculo grupo de seguidores de Bakunin que nunca participava de nenhuma passeata. Num dia estava preparando os cartazes de protesto contra a articulação dos estudantes que estava sob o controle do partido comunista; quando, de repente os companheiros chegam, cheirando a sangue coalhado, cuspindo palavrões, uns aos berros, outros chorando miúdo como crianças por falta de colo. Nesse dia, decidira sair da facção, não se lembrava agora, se por escolha própria, por sentimento de culpa de não ter apanhado da polícia também como seus amigos ou se fora, na verdade, expulso. Sorrindo desgraçadamente lembrou-se: fora expulso.
Em sua cabeça ainda havia uma mão comprimindo seu cérebro, não sentia nada em seu corpo, apenas seu estômago que parecia um mar em revolta, e o que havia nele era como barquinhos frágeis à deriva preste a submergir, mas contrariando a metáfora, os barquinhos frágeis, ou melhor, sua última refeição emergiu de seu estômago como se tivesse gravado a queda de uma cachoeira e agora estivesse voltando à fita e vendo a cachoeira subir até transbordar para fora da boca.
O vômito pintara de creme a água que passava molhando seus calcanhares. Foi um alívio. Lembrara agora o porquê de estar ali naquela rua desconhecida, qual uma flor que balança ao vento e aos poucos vai perdendo suas pétalas, seu encanto. Estava fugindo, fugindo de tudo. Tentava a todo o tempo dar um sentido para sua vida, queria ser jogador de futebol, falhara. Queria ser vocalista de uma banda de rock, falhara. Queria ser jornalista, falhara. Queria ser economista, falhara. Queria estar junto a quem mais gostara na vida, a pessoa que tinha o beijo mais delicioso que já provara, mas, mais uma vez desperdiçara a chance. Paulo Coelho estava errado, o próprio sabe que está, mas afinal de contas foi mentindo que saiu do buraco, então é compreensivo, além do mais, a mentira o fez vender muitos livros, quase um milagre se tratando de Brasil. Mas aquela balela de dizer que é só acreditar em seu sonho, ter força de vontade e perseverança que o mundo conspirará a seu favor não enganava mais Daniel. Sentira na pele os percalços pelos quais teve que passar na vida e sabia do preço que tinha que pagar para continuar vivendo sem sonhos, e sem sonhos sabia que nesse mundo não era possível todos se darem bem. A pobreza até certo ponto é o alimento dos ricos. E se sentia comido, completamente degustado, mas rejeitado e cuspido em seguida. Ele fora cuspido, como um caroço de uma fruta, essa era a conclusão que chegara. Fora cuspido. E muitos são todos os dias também, cuspidos.
Estava agora ali sem saber ao certo onde estava. Seu vômito desaparecera na corrente d’água que já era nitidamente mais fraca, não foi apenas comida que lançara, vomitara também sua vida.
E agora ela descia com o esgoto da rua se espalhando por entre os outros detritos. Para onde sua vida estaria indo?
O desespero na ausência de lucidez subira por todo seu corpo dominando seu pensamento, que estava agora refém de seus medos. Seus estatelados olhos antecipavam sua ação. Cambaleante, mas incrivelmente rápido Daniel se pusera de pé e saíra correndo atrás de sua vida. Chegando à próxima esquina concluiu que só poderia ter descido rua abaixo tal qual o esgoto que por ali também seguia.
Não podia mais distinguir entre a sua vida e o esgoto fétido que por ali escorregava. Daniel então apavorado pela iminência de perder-se da vida, corria, corria desesperado ele corria. Já se enxergava a esquina à diante, quando já cansado e transpirando a álcool diminuíra o ritmo. Nesse instante, uma sinfonia vagneriana feita de luzes e sons, alcançou os acordes mais altos, finalizando com o estrondo de seu corpo ao chão.
O som alto de um carro pára rente a Daniel, dos bancos dianteiros descem pés cambaleantes e indecisos. Daniel ouve em forma de ruídos ininteligíveis vozes nervosas discutindo o que fazer, o dono dos pés mais trêmulos entra no carro seguido dos demais. No som do carro a música daquela noite em que transava no chão do seu quarto, com quem é, hoje, a dona de seus segredos mais íntimos e que seria conforme os sussurros no ouvido e as promessas daquela noite a mãe de Joshua e Jennefer, que ainda não havia nascidos, mas já tinham nomes, nomes que é só o que restava para Daniel nesta noite, que descobrira que a mãe de seus filhos casara com outro, antes mesmo de seus filhos nascerem. A mãe de seus filhos... Mas também a mãe de seus sonhos, sonhos que foram sonhados juntos e que não fazem mais sentido em sua solidão.
Qual o sentido que a vida pode ter quando os sonhos não se tornam realidades? O homem é aquilo que sonhou ser. Para continuar sonhando, para continuar vivendo, entretanto, é necessário que os sonhos se realizem, é imprescindível acreditar no ato de sonhar. A vida também é feita de sonhos, sobretudo, é feita da crença de que eles um dia vão se realizar. O que acontece então quando não mais se acredita nos sonhos? Quando não mais existem caminhos a escolher? Quando nada mais importa... E quando nada mais importa é o sinal de que nada mais existe. Tal pensamento germinava na mente cansada de Daniel e desaparecia no mesmo instante, e os poucos segundos de reflexão era uma mistura de razão, emoção, dor e solidão que batida no liquidificador dava origem a uma cornucópia de enigmas. Porém, a lembrança dela não lhe saía do pensamento, era uma imagem que se destacava perante a bagunça de sua mente.
A sua consciência como num último suspiro tentou-lhe consolar, então pensou: no mundo atual é melhor não ter filhos mesmo. Foi uma tentativa em vão, porque mesmo enaltecendo o que não tinha tanta importância tentava lhe ocultar o verdadeiro trauma: a culpa por ela não estar mais ao seu lado, a falta imprescindível que ela fazia naquele momento de dor, em que deslizava por um escorregador de lâminas caindo num poço de álcool. Foi esse itinerário de racionalidade que descobriu: a mente é consciente até em sua inconsciência. Ela revela apenas o que quer, quando quer, conscientemente, fingindo inconsciência. Como um bêbado que não assume o que fez com o pretexto de que esteve alcoolizado. E Daniel sabia muito bem disso.
Mas, foi então que descobrira com o som dos pneus rangendos que se sobrepunha sobre a canção que fertilizou sua memória lhe proporcionando, tal qual a um jato de gozo, a recordação daquela noite: “With or without you, With or without you...” Com ele ou sem ele não importava mais, nada mais importava, ele estava ali estirado no chão dobrado feito um guardanapo que se limpa o nariz sujo de sangue e depois se joga fora. Ele estava ali jogado fora.
Bravamente correra atrás de sua vida, mas não a alcançara. E a bravura nesta corrida existencial não era recompensada. Aflito pensava onde poderia estar ela uma hora dessas. Talvez e o mais provável é que estaria nas galerias junto ao esgoto fétido, junto às dejeções de onde não mais podia separá-la. Nessa galeria de um marrom pútrido, Daniel dançava com ela, a pessoa que mais amou, e nunca foste corajoso de confessar, nem para si mesmo, o quanto amava aquela mulher. A sua própria vida...
Agora, entanto, não importava, já não estava mais jogado à rua, sua vida não estava mais perdida no esgoto, o osso de sua perna não rasgava mais sua pele frágil. Ele só ouvia a boa voz do Irlandês, e ao som da música dançava flertando com o amor, que nunca conhecera, mas o desejava ardentemente.
Embriagado e entorpecido, não sentia dor, não sentia nada, e já era quase o nada. Apenas pensava, delirava ao som da sua memória que ia, como se atendendo ao seu último pedido, pescando as recordações boas. Quando, de repente, a sua volta se aproximaram pés curiosos e olhos que se fecharam e recuaram horrorizados que estavam pelo o mau gosto da estética surreal que viam. Daniel então, exausto, num instante em que abrir os olhos lhe custava muito, acordou. As bolas de seus olhos espantadas percorreram o horizonte, não estava mais dançando, a dor voltara, percorria todo o seu corpo, o desespero também voltara, sua vida estava indo embora esgoto abaixo e já não tinha forças para correr atrás dela. Alguém então sensível a sua afobação se aproximou e lhe pediu calma dizendo-lhe que estava chegando o socorro.
Daniel com grande esforço sentindo já os ossos perfurarem seu pulmão dizia, esganiçadamente: “a minha vida, eu quero a minha vida, eu quero a minha vida de volta”.
As pessoas a sua volta não entenderam o sentido daquelas últimas palavras e acharam que era só o desespero de alguém que sabia que iria morrer. Daniel, no entanto, já estava morto há muito tempo. Aquilo que ocorrera nos últimos minutos com Daniel fora apenas a descoberta de que já estava morto desde o dia em que não sabia mais para onde ir. Havia se perdido de sua vida. Ela o deixara. Ele não mais a sentia. O que havia agora era só o ritual de praxe do ser que deixara de existir. Ele não mais existia. Foi-se encontrar com o nada. Não havia mais nada, apenas o nada.
O nada, eis tudo...
01: 47.

Nenhum comentário: