sábado, 27 de outubro de 2007

Artigo: Economia Moral versus Liberalismo - um comentário crítico acerca do texto de E. P. Thompson

No texto: “A Economia Moral da Multidão Inglesa no Século XVIII”, que compõe um dos capítulos do livro Costumes em Comum, E. P. Thompson desenvolve algumas hipóteses inspiradas em Marx. Nesse sentido, o livro tem uma ligação estreita com a Formação da Classe Operária Inglesa e com as Particularidades dos Ingleses, nestes trabalhos Thompson visa com suas críticas combater alguns pilares da ortodoxia marxista.
O principal era o que estabelecia uma correspondência direta entre infra-estrutura e superestrutura, cuja principal conseqüência para os estudos históricos era o reducionismo que via uma relação direta entre desenvolvimento industrial e consciência de classe. Noutra perspectiva, Thompson verifica que a consciência de classe não depende da formação de um partido, do desenvolvimento tecnológico e muito menos da ideologia comunista para conduzir esta luta de classes. Inversamente, é na luta de classes que se configura a consciência da luta e da classe e esta se dá no transcurso histórico de luta e não apriori ou de fora para dentro por intermédio de um partido ou de uma vanguarda revolucionária.
Esta primeira crítica combate a idéia de movimentos operários, aos quais eram considerados utópicos com um “nível de consciência inferior”, nestas análises reducionistas eram encaixados todas as revoltas pré-industrial, os socialistas ditos utópicos pré-1848 e mesmos os anarquistas. Tais movimentos eram preconceituosamente denominados turbas. Contra isso, Thompson inverte a perspectiva de que a classe operária é fruto do desenvolvimento industrial, pelo contrário, o que se verifica na Inglaterra do século XVIII, objeto histórico de Thompson neste texto, é que a classe operária está em formação desde antes da Revolução Industrial e que os operários de fábrica vítimas históricas dos cercamentos que os impuseram à venda da força de trabalho como única forma de sobrevivência são herdeiros da cultura popular que lutava contra as imposições do laissez-faire nascente que estava destruindo uma economia moral. Esta noção de Thompson conceitua as práticas culturais antigas que regulamentava os costumes, inclusive as relações de troca, evitando os açambarcamentos e possíveis usuras dos comerciantes. Entre outras coisas, aquilo que impedia moralmente os fazendeiros de venderem suas colheitas para intermediários, obrigando-os a irem vender seus produtos no mercado para que o preço não aumentasse com a inclusão de atravessadores nas transações comerciais.
Neste texto Thompson nos mostra que o estabelecimento do liberalismo se deu através de lutas e em confronto com uma prática cultural existente que
“... tinha como fundamento uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres. Os desrespeitos a esses pressupostos morais, tanto quanto a privação real, era o motivo habitual para a ação direta”. [1]
Dessa forma, o que Thompson denomina de economia moral eram as práticas costumeiras de uma cultura que impunha que: “Os agricultores deviam trazer os cereais a granel para a praça do mercado local; não deviam vendê-lo enquanto ainda estivesse no campo, nem deviam retê-lo na esperança da elevação dos preços”. Tais costumes nos parecem hoje em dia absurdos, pois estamos tão inseridos e habituados com os imperativos liberais, que esses fatos se apresentam com uma tonalidade exótica. E aí está um grande problema, pois alguns historiadores em vez de investigar como se deu a transposição de uma economia moral para o liberalismo, já tomam este como natural, como uma organização inerente da sociedade. Havia um controle nos mercados que impedia os abastados de comprar antes dos pobres e a supervisão dos mercados também era uma proteção ao consumidor. Nesse sentido, as revoltas não eram meramente motins espontâneos gerados por épocas de más colheitas e fome e sim calcados numa cultura consensual que fora aos poucos sendo destruída pelas práticas mercantis liberais, mas não sem resistência e conflito advindo das revoltas das classes subalternas.
As práticas liberais foram sendo impostas gradativamente e, com isso, o mercado cada vez mais foi ficando menos transparente, pois os fazendeiros moralmente obrigados a venderem suas colheitas no mercado, burlavam os costumes e as vendiam para os intermediários, no entanto, para manterem as aparências iam assim mesmo ao mercado, e quando os consumidores chegavam diziam-lhes: “já acabou”. Outra prática que estava entrando em vigor contra a economia moral era o da recusa dos fazendeiros venderem em pouca quantidade, pois muitos já estavam vendendo toda a sua colheita antecipadamente para comerciantes.
Aos poucos também o governo que, baseado no direito consuetudinário que tendia a regulamentar as velhas práticas que estavam sendo burladas por comerciantes, fazendeiros e moleiros, começava a ser cada vez mais ambíguo em suas normas, pois a ideologia liberal já estava alcançando um status científico que garantia que o próprio mercado regularia a oferta e a procura e que em tempos de más colheitas, os altos preços garantiriam o racionamento dos gêneros evitando a fome, o que teoricamente seria muito bom para o governo. O mito da auto-regulação do mercado estava se tornando hegemônica.
Entretanto, o autor é consciente de que a economia moral a qual se baseavam as revoltas contra a carestia, a fome, o açambarcamento e os sujeitos históricos que impunham estas situações aos populares como mercadores, fazendeiros da gentry e moleiros
agiam segundo um modelo teórico consistente, esse era [porém] uma reconstrução seletiva do paternalismo, extraindo dele todas as características que mais favoreciam os pobres e que ofereciam uma possibilidade de cereais mais baratos.
Assim Thompson a seguir escreve:
Pois um aspecto a economia moral da multidão rompia decisivamente com a dos paternalistas. A ética popular sancionava a ação direta coletiva, o que era categoricamente reprovado pelos valores da ordem que sustentavam o modelo paternalista.[2]
Thompson nos mostra que os preceitos do liberalismo não poderiam ser comprovados empiricamente nas práticas comerciais do século XVIII na Inglaterra e para desmitificar o que, na verdade, se constituía como uma ideologia liberal da auto-regulação do mercado, ele escreveu:
Não deveria ser necessário argumentar que o modelo de uma economia natural e auto-reguladora, funcionando providencialmente para o bem de todos, é tão supersticioso quanto as noções que sustentavam o modelo paternalista – embora, curiosamente, seja uma superstição que alguns historiadores econômicos têm sido os últimos a abandonar. Em alguns aspectos, o modelo de Smith se adaptava mais acuradamente às realidades do século XVIII do que o modelo paternalista; e, em simetria e alcance de construção intelectual, era superior. Mas não se deve deixar de perceber o ar ilusório de validação empírica que o modelo contém. Enquanto o primeiro apela a uma norma moral – ao que devem ser as obrigações recíprocas dos homens -, o segundo parece dizer: “é assim que as coisas funcionam, ou funcionariam se o Estado não interferisse”. Entretanto, quando se consideram essas seções de A riqueza das nações, elas impressionam menos como um ensaio de investigação empírica do que como um excelente ensaio de lógica que se autovalida.[3]

Thompson assim é consciente de que a tradição paternalista também é ilusória na medida em que tais costumes se baseavam numa moralidade tradicionalista e demonstravam o medo pelo “novo” além de ser embutido de superstições de todo o tipo. Por outro lado, o liberalismo aparentemente obra do intelecto humano e de sua ciência mais desenvolvida, na realidade do século XVIII não poderia ser mais comprovado do que o paternalismo. A sua lógica, nesse sentido era uma construção ideológica que procurava romper com os costumes vigentes, até então, em benefício de uma classe ou de grupos que, com elas, ascendiam socialmente.
Quando consideramos a organização real do comércio de cereais do século XVIII, não temos à mão a verificação empírica de nenhum dos dois modelos [nem o do protecionismo da economia moral nem o do liberalismo]. Tem-se feito pouca investigação detalhada acerca do mercado; não há nenhum estudo importante sobre a figura-chave do moleiro. Até a primeira letra do alfabeto de Smith – o pressuposto de que os preços altos eram uma forma eficaz de racionamento – continua a não ser mais do que uma afirmação. É notório que a demanda de cereais ou de pão é altamente inelástica. Quando o pão custa caro, os pobres (como lembraram certa vez a uma observadora das altas esferas) não comem bolo. Da perspectiva de alguns observadores, quando os preços subiam, os trabalhadores talvez comessem a mesma quantidade de pão, mas cortavam outros itens nos seus orçamentos; talvez até comessem mais pão para compensar a perda de outros itens. De um xelim, num ano normal, seis pence seriam gastos com pão, seis pence com ‘carne inferior e muitos produtos da horta’; mas num ano de preços altos, todo o xelim seria gasto com pão. [4]
Tais documentos nos remetem ao problema de se considerar como lei natural as relações de mercado de oferta e procura, estas “leis” só são apreensíveis e inteligíveis no interior de uma sociedade, levando-se em conta as práticas culturais e os costumes dessa mesma sociedade. O caso do aumento do trigo concomitante com o aumento do consumo do pão, ao contrário, do que a “lei de mercado” afirmava, é emblemático porque nos permite evidenciar que os hábitos alimentares e os costumes da sociedade não estão à mercê das intempéries da natureza ou da ganância dos mercadores que escondiam o estoque de trigo quando o preço estivesse em baixa para vender em alta em um momento melhor, muito pelo contrário, estas práticas também são determinantes no contexto histórico.
Por outro lado, o que se percebe é que por trás da ideologia liberal defensora do livre-câmbio que garante um ambiente propício ao que pode lucrar mais sobre os que podem menos, é que há o predomínio marginal do monopólio entre os comerciantes que, detentores únicos de certas mercadorias essenciais, passam a controlar o preço dos produtos de primeira necessidade no mercado.
Assim, o liberalismo escamoteia o que seria o seu contrário, o monopólio. E torna-se além de uma ideologia também uma utopia, pois na prática ele não existe ou quando existe é um momento transitório, imposto por discurso ideológico, que transfere um mercado controlado pelo consenso moral de uma cultura há muito vigente para o controle de indivíduos que se enriquecem monopolizando o comércio dos gêneros essenciais à sobrevivência da população, como nos mostra a pesquisa histórica de Thompson.
E para além destes documentos o que todo defensor do liberalismo sonha é com o monopólio do mercado e a eliminação de seus concorrentes. Em um plano mais geral podemos constatar a luta dos países chamados emergentes na OMC contra os subsídios fiscais dos países ricos que sobretarifam os produtos primários importados que aportam em seus mercados consumidores. Os mesmos países ricos que impedem a concorrência de igual para igual entre os produtos primários são os mesmos que impõem o livre-mercado aos países “emergentes” para que seus produtos tecnológicos mais avançados entrem sem sobretaxa nos mercados alheios.
Portanto, o liberalismo é uma fachada que disfarça a luta intensiva pela instituição do monopólio pelo maior tempo possível. Em tempos imperialistas em que a tecnologia vai aos poucos eliminando a força de trabalho, que foi no capitalismo industrial a fonte privilegiada de lucro que se dava na produção, a criação de valor passa a ser obtida em outra esfera: no controle do mercado consumidor, por meio de leis protecionistas, de imposição tecnológica, enfim, pelo controle do mercado por parte das transnacionais. Mas este controle não ocorre à margem dos governos e sim por eles, através dos Estados e não sem a gerência deles, pelo contrário, quase tudo acontece via governo, ora escusamente ora por lei, obviamente submetido aos ditames das grandes empresas, os grandes patrocinadores das eleições. Em suma o dia que o liberalismo existir de fato e não apenas como ideologia que é um outro nível de realidade, nunca mais se gastará tanto nas eleições, e o governo será, se existir, apenas um chefe de Estado de luxo tal qual a monarquia inglesa. É por vias legais e governamentais que as regras de mercado, supostamente auto-regulado, se concretizam. Assim, o Estado tão rejeitado pelos papas do neoliberalismo é o canal privilegiado por onde passa os ditames de mercado e por onde são legitimadas suas práticas. É por isso que o neoliberal é um defensor da democracia, pois por meio dela se legitima práticas antidemocráticas e em vez de combater tais práticas, troca-se os governos e mantém o regime que as legitima, pois na democracia o culpado é sempre o povo que escolheu errado, que deu “azar” nas cartas que escolheu para jogar num jogo que as cartas já são marcadas e as regras já estão dadas e que, portanto, dentro delas, jamais se mudará o jogo. Precisaríamos virar a mesa e impor um outro jogo em que as regras seriam ditadas por nós.
[1] THOMPSON. “A Economia Moral da Multidão Inglesa no Século XVIII”. In: Costumes em Comum, p. 152.
[2] THOMPSON. “A Economia Moral da Multidão Inglesa no Século XVIII”. In: Costumes em Comum, p. 167.
[3] Ibdem, p.162.
[4] Ibidem, pp. 162-3.

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